HISTÓRIA
DA SUB-METRALHADORA AK-47
Por
Larry Kahaner
Artigo
publicado no WashingtonPost em 26/11/2006
Na
história da Segunda Guerra Mundial, a batalha de Bryansk é um conflito de pouca
importância, mal merecendo uma nota de rodapé. Contudo, Bryansk tem outro lugar
na história. Foi ali que um então desconhecido comandante de tanque, chamado
Mikhail Kalashnikov, decidiu que seus camaradas jamais seriam derrotados outra
vez. Nos anos seguintes à Grande Guerra Patriótica, como os propagandistas
soviéticos chamam aquela guerra, ele projetou e fabricou uma arma simples e ao mesmo tempo revolucionária, a
qual mudaria a maneira como as guerras seriam travadas e vencidas. Foi o rifle
de assalto AK-47.
O
rifle automático (submetralhadora) AK-47 tornou-se a arma mais prolífica e
efetiva do mundo, um artigo tão simples e barato que poderia ser vendido em
muitos paises pelo preço de uma galinha.Gravada na bandeira e nas moedas de
vários paises, agitada por guerrilheiros e rebeldes em todos os lugares, este
rifle é responsável por 250 mil mortes anuais.É a arma portátil padrão de no
mínimo uns 50 exércitos regulares e incontáveis milícias, da África, Oriente
Médio, América Central, e até mesmo Los Angeles.O rifle tornou-se um ícone
cultural, a forma característica de seu pente de balas, em forma de uma banana,
instilando em nossa consciência os contornos de uma arma mortífera.
Nesta
semana, a presença militar no Iraque suplantará o tempo que as forças
americanas estiveram engajadas na Segunda Guerra Mundial.E o AK-47 para sempre
fará um elo entre os dois conflitos. A própria história do rifle, desde a
batalha de Bryansk até a sangrenta insurgência no Iraque, é também a história
da transformação da moderna arte da guerra.O AK-47 implodiu velhas concepções
militares de superioridade em armamento, de táticas e estratégias, de quem
poderia ser um soldado e, principalmente, qual tecnologia triunfaria.
Ironicamente,
a arma que selou a Segunda Guerra Mundial (a bomba atômica), abriu o caminho a
ascensão do simples, porém mortífero, AK-47.A impossibilidade de um conflito
nuclear generalizado levou as duas superpotências a travarem guerras por
procuração em países subdesenvolvidos, envolvendo soldados mal treinados,
geralmente armados com AK-47, arma barata, durável, e de fácil manutenção e
manuseio. Ao findar uma guerra, mercadores de armas reuniam os rifles e os
vendiam a combatentes em outro conflito a explodir. A disseminação da AK-47
explica o fato de que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, tantas e tantas
"pequenas guerras" demoraram muito mais do que o esperado. Na
verdade, apesar dos bilhões e bilhões de dólares que Washington tem gasto em
armamento sofisticado, o rifle russo permanece a mais devastadora arma do
planeta, influenciando conflitos no Vietnam e outros lugares. Com esses rifles
de assalto, combatentes podem dominar um país, aterrorizar cidadãos, se apossar
dos espólios, e até mesmo manter superpotências afastadas.
Quando
a Alemanha inventou a blitzkrieg, foi um evento marcante que alterou para
sempre a forma de combater. Em vez de batalhas estáticas, entrincheiradas ou
fortificadas, a blitzkrieg concentra forças num ponto determinado na linha
defensiva inimiga, rompendo-a, e avançando célere por trás das linhas de
defesa. Em outro ponto da linha, se faz a mesma coisa. Tem-se então duas garras
de uma pinça, que ao se fecharem, podem engolfar um exército inteiro,
obrigando-o a render-se. São as batalhas de cerco.
Em
fins de Setembro de 1941, os alemães alcançaram os arredores de Bryansk,
situada a sudoeste de Moscou. No embate, os nazistas destruíram cerca de 80% da
cidade e mataram mais de 80.000 pessoas. Kalashnikov, na época com apenas 21
anos, foi ferido no ombro. Hospitalizado, sofreu muito a saber da chacina
cometida pelos inimigos contra seus
camaradas. Ele ficou então obcecado em criar uma submetralhadora que poderia
expulsar os alemães de sua pátria. Ainda na cama do hospital, ele rascunhou os
primeiros desenhos de uma arma o mais simples possível. Saindo do hospital ele
mesmo desenvolveu o protótipo de sua arma,posteriormente aprovada para
fabricação em 1947.Era a Avtomat
Kalashnikova 1947.Ela combinava as melhores características de uma
submetralhadora(leve e durável) e de uma metralhadora(poder de fogo).Em fins de
1949, as fábricas de armamentos já tinham produzido 80.000 AKs.
Embora
a AK-47 tenha vindo tardiamente para agir na guerra mundial, os soviéticos
sabiam que seu rifle de assalto poderia tornar-se a arma mais importante da era
moderna, e eles se esforçaram para mantê-la oculta aos ocidentais. Os soldados
soviéticos carregavam seus fuzis disfarçados em pochetes, para ocultar seu
formato, e recolhiam os cartuchos usados, para evitar o conhecimento de seu
calibre. Em 1956, a revolução na Hungria levou o líder soviético Nikita
Krushchev a enviar o Exército Vermelho para Budapeste. O conflito requereu o
primeiro uso em larga escala da AK-47, e ela fez um bom desempenho em luta urbana,
quando tanques pesados ficavam presos em ruas estreitas e eram atacados com
coquetéis Molotov pelos civis. Em fins dos anos 50,a União Soviética começou a
usar a AK-47 para disseminar o comunismo. Nos primeiros anos da Guerra Fria,
tanto Moscou como Washington tentaram conseguir favores de países neutros
através de vendas e doações de armas. Comparada com os fuzis americanos M-1 e
M-14, a AK-47 mostrou ser largamente superior. Sua robustez era apropriada para
ambientes úmidos das selvas e sua simples estrutura permitiu fácil manutenção
nas oficinas de países pobres.Finalmente a URSS distribuiu licenças gratuitas
para paises "amigos", como Bulgária, China, Alemanha Oriental,
Hungria, Coréia do Norte, Polônia e Iugoslávia. Enquanto isso, nos Estados
Unidos, os especialistas em armamentos continuaram com a velha noção de batalha
com o fuzil M-1.Este rifle teve ótimo desempenho na guerra mundial, a tal ponto
que George Patton classificou-o como "o melhor implemento de batalha já
produzido". Na verdade, o M-1 era pesadão, complicado, com seu pente
cabendo apenas oito cartuchos, e não era uma arma automática.
VIETNAM
Só
na Guerra do Vietnam os americanos se defrontaram com AK-47, e pagaram caro
pela desatenção governamental em reconhecer o poder de fogo da arma russa. Um
problema chave dos Estados Unidos no Vietnam envolveu o armamento básico. Apesar
de sua tecnologia avançada, as Forças Armadas dos EUA não possuíam uma arma de
infantaria que pudesse fazer frente a AK-47, no padrão bélico que emergia. Os
confrontos muitas vezes se davam com patrulhas nas selvas, com ambos os lados
lutando cara a cara, e o lado que pudesse disparar rajadas mais rápidas e
consistentes levava vantagem. Só após muitos anos de discussão burocrática, os
militares americanos produziram seu próprio rifle de assalto, o esbelto e
sofisticado M-16.Mais de 100.000 deles foram encomendados no verão de 1966 e
despachados para a zona de guerra. Já em Outubro daquele mesmo ano, relatos
inesperados começaram a chegar. Os rifles estavam enguiçando em combate. Soldados
ianques eram encontrados mortos, com os rifles travados, tentando consertar a
pane. A moral da tropa caiu sensivelmente, ao constatarem que não podiam
confiar na sua arma. Ao verificarem isto, os vietcongs tornaram-se encorajados.
Ao verem o "rifle negro", como eles o chamavam, não ficavam mais
amedrontados. Embora o Exército tentasse ocultar o fracasso, relatos chegaram
ao Congresso por via dos pais das vítimas, assim como de soldados que se
sentiam traídos. Um subcomitê parlamentar investigou o caso e ouviu relatos de
soldados rotineiramente removendo AKs do inimigo abatido, e usando-as invés de
seu próprio M-16. No fim, descobriu-se não haver nada de errado com o fuzil, o
problema estava na munição. M-16 travava porque burocratas do Pentágono insistiram
em mudar a composição do explosivo propelente: resíduos da combustão entupiam o
mecanismo, após várias tiros disparados. Mas, quando o erro foi corrigido, foi
tarde demais.AK-47 ficou mundialmente famosa como arma de infantaria mais
avançada e confiável, aquele que podia até superar as melhores ofertas
ocidentais. Era o produto low-tech comunista contra o high-tech capitalista, e
a propaganda ganhou o mundo.
AFEGANISTÃO
Se
a Guerra do Vietnam deu fama a AK-47, foi a invasão do Afeganistão pela URSS
com o subsequente desmantelamento da União Soviética que acelerou a
disseminação de AK-47, colocando esta arma nas mãos de insurgentes e
terroristas, os quais consideravam agora a arma como um ícone
anti-imperialista. Estrategicamente, no início a invasão do Afeganistão foi um
sucesso. As baixas comunistas foram inferior a 70 soldados, a maioria
relacionadas a acidentes, não a combates. Os planejadores acharam que o
conflito duraria menos de 3 anos, um cronograma realista, considerando que os
nativos não dispunham de armas modernas. Porém, tudo mudou quando a CIA começou
a fornecer extensiva ajuda aos guerrilheiros via Paquistão, incluindo centenas
de milhares de AK-47, de fabricação chinesa. A CIA preferia AK devido a seu
baixo custo, confiabilidade e farta
disponibilidade.
Apesar de desvios e corrupção, a CIA conseguiu
manter os rebeldes bem abastecidos em suprimentos. Em meados dos anos 80, a
guerra chegou a um impasse, já com 100.000 soldados no teatro, e o público
russo descontente com um conflito impossível de ser vencido. Quando os últimos
soldados soviéticos abandonaram o Afeganistão em 1989, a vasta infraestrutura
de armamentos não desapareceu. Após uma década de operações, tinha se tornado
uma parte entranhada na economia e na cultura do Afeganistão e países vizinhos.
ÁFRICA
Mesmo
antes da retirada, a imprensa ocidental já tinha percebido o vasto arsenal de
AKs na região, e o conceito de uma "cultura Kalashnikov" adentrou no
léxico. No Paquistão, por exemplo, uma parte substancial da economia do país,
incluindo gangs que roubavam e sequestravam, traficantes de drogas que seguiam
rotas estabelecidas, e pequenos armeiros que compravam, consertavam e revendiam, ou até fabricavam sua próprias
versões, dependiam da sempre presente AK.A expansão aumentou com o colapso da União
Soviética, e as repúblicas, que antes faziam parte do bloco, começaram a
leiloar seus arsenais.AK-47 começou a ser vendida a preço de banana, invadindo
agora a África. Libéria, Ruanda, Serra Leoa, Somália, onde quer que houvesse um
conflito tribal, AK prolongou lutas que, provavelmente não teriam durado tanto
sem ela. A arma tornou-se parte do cotidiano de africanos, a ponto ser chamada
um cartão de crédito: "Não saia de casa sem ela".
AMÉRICA
LATINA
Na
América latina,AKs acabaram nas mãos dos cartéis de drogas e rebeldes
guerrilheiros.Assim como a CIA despachou armas para o Afeganistão, ela fez o
mesmo na Nicarágua, abastecendo os contras, que combatiam os sandinistas
marxistas.AKs provocaram guerras civis em El Salvador assim como a violência
das FARC na Colômbia.Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez recentemente
anunciou a compra de 100.000 AKs dos arsenais russos.Ele também informou planos
para fabricar a arma em seu país.
AL-QAEDA
Antes
da invasão soviética, o Afeganistão era considerado um país muçulmano moderado,
porém a guerra fortaleceu um ramo radical islâmico, alimentado pelas armas da
guerra e pela economia devastada. Nas regiões montanhosas próximas à fronteira
com o Paquistão, o milionário saudita Osama bin Laden deflagrou uma jihad,
primeiro contra os russos, depois contra os americanos.
Já
no Iraque, apesar de que o arsenal das grandes armas de Saddam Hussein terem
sido destruidas: tanques e mísseis, sete a oito milhões de armas portáteis
foram saqueadas, alimentando a insurgência subsequente.
CONCLUSÃO
Já
com 85 anos, doente e quase surdo, Kalashnikov frequentemente se apavora com
sua criação. "Eu gostaria de ter inventado um aparador de grama",
afirmou ele ao The Guardian, em 2002.Em 2004, a revista Playboy considerou-a um
dos "50 Produtos Que Mudaram o Mundo", além do desktop Macintosh da
Apple, da pílula anticoncepcional e do Sony Betamax.
Mesmo
assim, o inventor russo não recebe royalties por seu trabalho, e considera
outros como culpados pela mortandade, dizendo: "Eu inventei uma arma para
defender a pátria, não me arrependo ou me responsabilizo se outros fizeram mal
uso dela"
larry@kahaner.com
Larry
Kahaner é o autor do livro "AK-47: The Weapon That Changed the Face of
War"
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