HISTÓRIA DA FAMILIA
MEIRA LINS.
POR JOSÉ OTÁVIO
MEIRA LINS.
OBS: SALVAMOS DO FACEBOOK
APENAS OS CAPÍTULOS A SEGUIR (ALUIZIO GOMES)
5º Capítulo
ACHEI QUE TE AMAVA
Isso é um problema
de família. E dos dois lados. O avô por parte de mamãe tinha um listão de
setenta e duas namoradas. Papai, com cinco anos, já tinha se apaixonado
perdidamente pela professora de piano; passou uma semana sem comer quando
cancelaram as aulas. Comigo não podia ser diferente, foram muitas paixões. Não
confundam com amor ou safadeza, isso é outra coisa. Falo daquelas paixonites
platônicas, anônimas, que se apoderam de sua cabeça – pensa, pensa, pensa...
Paixão é coisa que perturba o juízo e não passa nem perto do coração. Começou
aos quatro anos, com a professorinha do jardim.
Na época era jardim
mesmo, pois a aula era embaixo de um caramanchão florido na casa da bela. A
vizinha paulistinha vinda do interior, puxando pelos erres, era um misto de
Dóris Day em “A espiã das calcinhas de renda” com figuras românticas de algumas
porcarias que li em M.Delly – avisei que não tive filtro na leitura. A filhota
do meio de um amigo de papai, com quem fizemos uma viagem de Kombi para o Rio –
linda, linda, linda... Uma alemãzinha que foi jogada lá em casa enquanto os
pais passavam uma temporada na Alemanha – branquinha, lourinha, com uma butuca
de olhos azuis. Passei da infância e, mesmo assim, ainda continuei com as
paixonites agudas. A bela do muro – passava a tarde em cima do muro em frente
ao prédio onde morava, uma decepção quando finalmente me aproximei, pois só
comia batata frita e execrava qualquer outra variação gastronômica, o que era
um sacrilégio para quem vem de uma família em que a comida é cláusula pétrea da
boa vida. A outra, que fingia ser ela e me deixava louco, ligava para mim assim
que passava em frente ao prédio da bela; quando descobri, tive a maior
oscilação na autoestima que um cara pode ter.
A priminha que
correspondia, mas que a norma de família – primo não namora com prima –afastou.
Uma irmã mais velha de uma tia torta, belíssima, mas muito barro pro meu
caminhãozinho. Muito barro mesmo, pois hoje pesa quase uma tonelada, de gorda
que é. As gêmeas cariocas que todo ano passavam o Carnaval na cidade, mas que
só tinham olhos para dois marmanjos com quem se casaram e se deram mal. A
coleguinha de faculdade que, na casa de campo – de medo – exigia dormir no meu
quarto, cuja barra não enfrentei, pois, por trás do rosto angelical, existia uma
fera que eu não sabia se podia controlar,sem falar nos peitões que não faziam
meu gosto na época. A paulista quatrocentona que só pensava em arrumar um
descendente de bandeirantes e execrava qualquer outra descendência, mesmo que
estivesse no solo pátrio desde mil quinhentos e trinta e dois. A coroa goiana,
mulherona, que dava, dava e dava corda, mas não ia além disso, pois era casada
com um cara pra lá de brabo. Precisou passar muitos anos e a viuvez para que...
aí já não foi paixão, foi safadeza mesmo.
Não consegui bater vovô no ranking das
namoradas, foram apenas quarenta e três, olha que comecei tarde. A primeira
pegada de mão aos dezesseis. Dois namoros sérios, um deles com alguns jogos de
guerra, pois, na época, não se podia fazer muita coisa. Avançou, casou. Com a
instituição da vela, a irmãzinha, que tava o tempo todo colada no casal... era
quase impossível até passar por perto dos peitinhos, maior sonho de consumo da
época. Com essa convivência toda, não foi nem uma, nem duas vezes, que me apaixonei
por uma linda irmã-vela. Confesso que tive algumas – muito poucas – chances de
penetrar o flanco inimigo, a galega sem os dedos dos pés foi uma delas, mas o
medo de acertar o pito da menina e ter que casar fazia qualquer um não passar
das coxinhas das garotas. Pra quem ficou curioso com a lourinha sem dedinhos, a
história é a seguinte: ela era linda, ela era inteligente, ela tinha um corpão,
no teste de praia era nota dez; o negócio é que, quando se chegava perto e se
olhava bem direitinho, faltavam os dedos do pé. As riquinhas, de boa família,
pareciam já ter nascido comprometidas; namoravam apenas com as parelhas dos
riquinhos de boa família. Outra baboseira era se apaixonar pelas mais velhas.
Pura roubada, pois elas pareciam que nem te enxergavam. Nesse caso, foram
muitas: a riquinha que de tão bonita levou um pretendente ao suicídio; a
húngara de olhos verdes; a modernosa que já fazia de tudo. Paixão, paixão,
sempre achava que amava. Passou a juventude, tudo na mesma. Entrei na fase
adulta, tudo na mesma. Já casado, tudo na mesma. Foi um carma que sempre me
acompanhou – se apaixonar.
7º Capítulo
MODISTA
Pai rico, filho
nobre e neto pobre. Esse era um dos ditados mais usados por vovó. Não era o seu
predileto, muito pelo contrário, mas o mais repetido. Foi na pele que ela
sentiu o dito popular. Vovô era filho do maior exportador de açúcar do país.
Ele e os irmãos tiveram o azar de perder a mãe bem cedo.
O pai, que entendia
tudo de exportação de commodities, e nada de educação, teve a
imbecil-ideia-genial-comercial de separar os
filhos, alguns ainda usando fraldas, e mandá-los para as melhores escolas em
cada um dos países com o qual negociava o danado do ouro branco. Vovô – para
sorte ou azar – caiu na terra da rainha.
No Eaton College,
convivendo com a fina flor da Bretanha, só podia ter aprendido mesmo duas
opções de vida, caçar, ler, caçar, tomar champanhe, caçar, cavalo puro-sangue
inglês de corrida, caçar, atravessar o Canal da Mancha para Paris, caçar e
comer bem, que ninguém é de ferro. Na volta da turma, só podia dar a merda que
deu. Em um ano de administração, detonaram uma cacetada tão grande de contos de
réis que o velho tomou de volta o rumo dos negócios, e aí ficou até morrer.
Vovô passou assim a fazer o que mais sabia: caçar, com suas espingardas feitas
sob medida no armeiro londrino, comer, ler em inglês, que era sua língua-mãe,
fazer neném em vovó. Depois que o bisavô milionário morreu, foram mais de vinte
anos vivendo nababescamente com o que tinha ficado de herança; olha que eram
dezesseis filhos e um monte de agregados. Meu avô comeu ruas e ruas de casas,
passou nos cobres engenhos e mais engenhos de açúcar.
O conceito era fazer o que o dinheiro desse.
Prova disso é que nunca colocou mais que alguns réis de gasolina no carro,
chegou o dia em que o Buikão de rodas de madeira ficou na garagem de casa,
nunca mais andou, porque a verba destinada não comprava nem um litro de
combustível. Ele, o nobre; papai, o mais velho dos dezesseis, o pobre. Nos
dezessete anos de papai, a grana havia acabado. Vovó, que era superprendada,
virou modista. Passou a costurar para a turma da sociedade. Quando o dinheiro
sai pela janela, o desamor entra pela porta. Vovó e vovô nunca mais se bicaram.
Meu velho teve que ir à luta. De porteiro a empresário, foram mais de vinte
anos. Nunca deixando para trás os irmãos. Foram anos roendo osso. Vovó chorava
toda vez que, na mesa, um dos meus tios dizia: acabei ou acabou-se. Papai
passou toda a vida comendo asa de galinha e o sobre. Mesmo podendo, nunca mais
se habituou a uma sobre coxa ou a uma titela. Mamãe, que tinha casado e ido
morar na mesma casa, criou parte da meninada. Não tinha comida que desse.
Várias vezes, quando as coisas melhoravam, se saciava os esfomeadinhos com
vinte quilos de batata frita, feitas em caldeirões no fogão externo, a lenha. A
solução foi passar a criar porco, galinha e peru.
O perigo era uma vizinha
de mão-leve. Os bichos só pararam de sumir quando vovó, após uma contagem
conjunta-criteriosa, contratou-a para tomar conta do rebanho. A família sempre
teve fixação por peru. Era a única ave que aguentava o tranco da fome da
meninada e de vovô. Começaram abrindo uma pequena oficina no oitão da casa.
Todos trabalhavam. O negócio foi crescendo. As estradas ruins quebravam muitas
molas, abriram uma fábrica. Compraram uma frota inteira de caminhões, surgiu a
transportadora. Daí para se conseguir revendas autorizadas, fazendas de gado,
siderúrgica de ferro gusa, hotéis não foi um pulo, não, foram mesmo muitos anos
de pedreira. O velho se recuperou de tudo, só não recuperou o gosto de gastar
dinheiro. Tinha uma verdadeira obsessão por segurança. Achava que o dinheiro
era pra se guardar. Via assombração em tudo. Não abria mão de fazer o imposto
de renda de toda a família, o que transformava essa época num imenso terror
familiar. Um dos poucos luxos que se dava era, de vez em quando, fazer uma
comprinha por reembolso postal. Em computador nunca tocou, mas foi um dos
primeiros empresários a colocar um nas empresas.
8º Capítulo
FRITADA E PASTELÃO
Essa minha família acha que a tal da comida é milagrosa, a
começar pela lenda de que meu bisavô foi salvo da gripe espanhola por um dos
tradicionais e pesadíssimos pratos típicos da família. O cara tava ferrado, de
cama, suando mais que bode embarcado, sentiu o cheiro da mão de vaca feita pela
preta velha na cozinha, colocou o robe de chambre, desceu a escadaria, comeu
dois pratões da famigerada com pirão, teve uma suadeira dos diabos, subiu as escadas,
tomou banho, colocou o fraque com colete, pegou o carro de aluguel, foi para os
seus armazéns no cais do porto. Mandou a espanhola para além-mar, pra não dizer
coisa feia. Temos uma puta fixação em comida. Isso ocorre há mais de quatro
gerações. A maior parte da família já nasce cozinhando, seja homem, seja
mulher. Dessa obsessão não escapa ninguém. Em época de fartura, em época de
penúria, a comida é ponto central na cabeça da parentada. O interessante é que
não tem gordo na família. O que os caras querem mesmo é se deliciar. O que
importa é a qualidade, não quantidade.
Mesmo na pior das situações, a turma nunca deixou de falar do
tal do arenque, do hadoque, do caviar, do salmão defumado, mesmo que fosse só
pra ficar com água na boca. Sem falar que se usa comida até pra gozar os
outros. A fritada de miolos de boi de vovó foi muitas vezes servida sem se
dizer à vítima do que se tratava. De tão gostosa, quem não sabia o que era,
enfiava o pé na jaca. Tinha gente que, depois de se refestelar, quando ficava
sabendo o que tinha comido, corria sem a menor discrição para o banheiro e
enfiava o dedão na goela. Toda história gira sempre em torno da comida: o amigo
caçador que meu avô considerava já morto, sumido há mais de quinze anos, que
ressuscitou batendo no portão exatamente no dia de uma panelada de mão de vaca,
sua comida predileta. Cada um tinha, para os que já morreram, ou têm, para os
que estão vivos e bulindo, um prato de sabor imbatível inesquecível. As tias:
bolo de limão, bolo de banana, bolo de rolo, bolo de laranja, frango de forno,
cozido, cassoulet, as inesquecíveis panquecas etc. As avós: feijão-mulatinho
feito no caldeirão de barro no fogo de carvão, sopa de feijão, sopa de milho,
peruada etc. Mamãe: sarapatel, vatapá, pirão de nenê, coq au vin, bacalhau de
coco etc. Papai: o bouillabaisse, o hadoque pochê, peixada com peixe fresco
bulindo, caviar com ovos cozidos, cebolas bem picadinhos, alcaparras etc.
Meu DNA não podia falhar. Com dez anos, pedi a minha avó que
fizesse as famosas tapiocas de manteiga até eu pedir, por favor, pra parar. Aos
onze, já sabia o dia do kassler com chucrute na casa da tia casada com o suíço.
Nunca sem avisar da ida com antecedência, pois lá a ração era na conta certa,
não comunicou que ia, ficava sem comer. Na casa da tia das panquecas, quando eu
aparecia de surpresa, ouvia sempre o código FC. Descobri muito tempo depois que
o “Família Contenha-se” era dirigido à voracidade dos sete filhos na mesa e uma
consideração à visita. Tinha gente que até escondia comida: ganhava um prêmio
quem descobrisse onde vovô escondia o presunto cru, as misteriosas latas de
arenque e os potes de caviar de papai, que só apareciam na hora da mesa, os
chocolates suíços do tio suíço, que duravam todo tempo entre uma viagem e outra
para a Suíça. Quem é louco por comida passa também por poucas e boas. Uma vez,
no interior, tive que comer um tatu que seria maravilhoso se a cozinheira não o
tivesse servido com as próprias mãos, com o esmalte das unhas descascado. Ou o
tal de picoroco no Chile, que mais parecia um caramujo apodrecido. Ouriço?,
estou fora; rabo de tanajura?, também. Buchada de bode, tem que dizer que não
gosta; depois, sentir o cheiro e aí aceitar, se não cheirar à merda de bode.
Cozinho quase tudo e com facilidade. Ficou com água na boca? Gosta de cozinhar?
No final dou umas receitinhas de família para você arriscar.
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