quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

MALDIÇÃO

A MALDIÇÃO DO PETRÓLEO

Por Denis Russo Burgierman
Publicado em www.abril.com.br em 2008


O presidente Lula comemorou a imensa descoberta de petróleo ano passado dizendo que “Deus é brasileiro”. Antes de celebrar, talvez ele devesse ouvir a opinião do venezuelano Juan Pablo Pérez Alfonso (1903-1979), fundador da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Para ele, petróleo não é indício da mão de Deus, mas sim do intestino do demo. Juan Pablo costumava dizer que petróleo é o "excremento do diabo".

Ele sabia do que estava falando, já que viu sua Venezuela erodir suas instituições democráticas e se perder em corrupção. É assim na maioria dos grandes exportadores de petróleo. Quase todos são ditaduras intermináveis, como o Iraque de Saddam e a monarquia saudita. Eles crescem menos que seus vizinhos sem petróleo e seus problemas sociais levam mais tempo para ser resolvidos. Vários são países devastados por guerras civis. Mesmo as democracias do óleo tendem a ser pouco democráticas. Veja o México, onde um mesmo partido, o PRI, ficou no poder por mais de 70 anos. Dos 20 maiores exportadores de petróleo do mundo, 16 são ditaduras. E outros dois – México e Venezuela – são democracias com instituições fracas. A maioria está nos últimos lugares do mundo em desenvolvimento humano, e entre os primeiros em desigualdade e endividamento. É nesse clube que o Brasil está prestes a entrar. Será que devíamos mesmo estar comemorando? E será que tem algum jeito de escapar da “maldição do petróleo”?

Por que petróleo faz tão mal? Como é que uma das mercadorias mais valorizadas do mundo pode gerar pobreza, guerra e autoritarismo? Nos últimos anos, economistas e cientistas políticos encontraram uma série de explicações.

A primeira: petróleo enfraquece a economia. Ele custa tão caro que uma cachoeira de dólares entra no país. Com muitos dólares em caixa, a moeda nacional se valoriza. Resultado, fica barato importar produtos estrangeiros e caro produzir – aí a indústria nacional definha. Só que o preço do petróleo é uma montanha-russa. Em 1990, o barril custava mais de US$ 40. Meses depois, caiu para menos de US$ 20. Enquanto este texto era escrito, um barril custava US$ 135. Essas altas e baixas destroem qualquer um. O preço sobe, o país se alaga de dólares e as indústrias fecham. O preço cai, secam os dólares, o país se endivida e não tem indústria para ajudar.

A segunda: petróleo distancia os políticos do povo. A maioria dos grandes exportadores de petróleo nem cobra impostos da população. Não precisam. Têm dólar sobrando. Os governos não prestam contas a ninguém, roubam descaradamente, torram dinheiro público e a sociedade civil é fraca, desestruturada.

A terceira: petróleo torna a política mais burra. A maioria dos países exportadores não tem um projeto de desenvolvimento, apenas grupos rivais brigando pelo poder – e pelo acesso ao poço de dinheiro. Quando chegam lá, gastam que nem loucos, sem planejamento, para não deixar nada para os rivais.

Quer dizer então que nos ferramos? Não. Num certo sentido, o Brasil deu sorte de virar exportador justo agora, quando estudiosos estão desvendando os mecanismos da maldição e inventando antídotos. Outra sorte é que o nosso petróleo está enterrado bem fundo, e vai demorar para começar a jorrar. Ou seja, dá tempo de nos prepararmos. Só que devemos trabalhar já, antes de o petróleo começar a ser vendido. Veja o que precisamos fazer:

1. Ter um projeto de país. Está na hora de governo, oposição e sociedade civil discutirem que tipo de país nós queremos. Claro que não vamos concordar em tudo, mas dá para alcançar alguns consensos. Por exemplo: o de que precisamos de educação básica decente, de infra-estrutura, de um sistema de saúde, de pesquisa científica, de proteção ao ambiente. O papel da imprensa é discutir essas questões e informar a sociedade, para que todo mundo possa participar. Com todo mundo de acordo com esse projeto, podemos planejar a longo prazo o uso do dinheiro do óleo – e cada governo novo tem a obrigação de continuar o que o anterior começou.

2. Proteger a economia. Quando o dinheiro vier, nos encheremos de dólares. Precisamos evitar que essa dinheirama inunde a economia e supervalorize o real. O ideal é colocar tudo numa conta separada, que precisa ser vigiada de perto pela oposição e pela sociedade civil, para que ninguém tire dela mais do que o permitido. O governo só pode sacar até um certo limite, e deixar o resto guardadinho para os nossos netos. Se o preço do petróleo cair, pode sacar um pouquinho mais para evitar depressão na economia. Se subir, é hora de guardar para tempos bicudos. E tudo o que o governo sacar tem que ser usado para colocar em prática o projeto de país descrito no item 1. Nada de aumentar a gastança do governo.

3. Transparência. O único jeito de evitarmos que surrupiem a grana é abrirmos todas as janelas. Precisamos que cada funcionário do governo tenha obrigação de prestar contas do que faz. Precisamos de organizações independentes destinadas a investigar gastos públicos. Precisamos de uma imprensa menos gritona e mais vigilante e racional. Precisamos que cada órgão do governo tenha como uma de suas funções fiscalizar um outro órgão do governo. Precisamos que o orçamento seja claro, transparente e público. O saldo da conta do dinheiro do petróleo, por exemplo, tem que poder ser acessado online por qualquer brasileiro.


Se fizermos tudo isso, o petróleo não só deixará de ser uma maldição como resolverá a maioria dos problemas do Brasil. Está aí a Noruega, 3a exportadora de petróleo e 2o maior índice de desenvolvimento humano do mundo, para provar que é possível. Mas, se não fizermos a lição de casa… Hm, a coisa vai feder.

AK-47


HISTÓRIA DA SUB-METRALHADORA AK-47

Por Larry Kahaner
Artigo publicado no WashingtonPost em 26/11/2006

Na história da Segunda Guerra Mundial, a batalha de Bryansk é um conflito de pouca importância, mal merecendo uma nota de rodapé. Contudo, Bryansk tem outro lugar na história. Foi ali que um então desconhecido comandante de tanque, chamado Mikhail Kalashnikov, decidiu que seus camaradas jamais seriam derrotados outra vez. Nos anos seguintes à Grande Guerra Patriótica, como os propagandistas soviéticos chamam aquela guerra, ele projetou e fabricou uma arma  simples e ao mesmo tempo revolucionária, a qual mudaria a maneira como as guerras seriam travadas e vencidas. Foi o rifle de assalto AK-47.
O rifle automático (submetralhadora) AK-47 tornou-se a arma mais prolífica e efetiva do mundo, um artigo tão simples e barato que poderia ser vendido em muitos paises pelo preço de uma galinha.Gravada na bandeira e nas moedas de vários paises, agitada por guerrilheiros e rebeldes em todos os lugares, este rifle é responsável por 250 mil mortes anuais.É a arma portátil padrão de no mínimo uns 50 exércitos regulares e incontáveis milícias, da África, Oriente Médio, América Central, e até mesmo Los Angeles.O rifle tornou-se um ícone cultural, a forma característica de seu pente de balas, em forma de uma banana, instilando em nossa consciência os contornos de uma arma mortífera.
Nesta semana, a presença militar no Iraque suplantará o tempo que as forças americanas estiveram engajadas na Segunda Guerra Mundial.E o AK-47 para sempre fará um elo entre os dois conflitos. A própria história do rifle, desde a batalha de Bryansk até a sangrenta insurgência no Iraque, é também a história da transformação da moderna arte da guerra.O AK-47 implodiu velhas concepções militares de superioridade em armamento, de táticas e estratégias, de quem poderia ser um soldado e, principalmente, qual tecnologia triunfaria.
Ironicamente, a arma que selou a Segunda Guerra Mundial (a bomba atômica), abriu o caminho a ascensão do simples, porém mortífero, AK-47.A impossibilidade de um conflito nuclear generalizado levou as duas superpotências a travarem guerras por procuração em países subdesenvolvidos, envolvendo soldados mal treinados, geralmente armados com AK-47, arma barata, durável, e de fácil manutenção e manuseio. Ao findar uma guerra, mercadores de armas reuniam os rifles e os vendiam a combatentes em outro conflito a explodir. A disseminação da AK-47 explica o fato de que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, tantas e tantas "pequenas guerras" demoraram muito mais do que o esperado. Na verdade, apesar dos bilhões e bilhões de dólares que Washington tem gasto em armamento sofisticado, o rifle russo permanece a mais devastadora arma do planeta, influenciando conflitos no Vietnam e outros lugares. Com esses rifles de assalto, combatentes podem dominar um país, aterrorizar cidadãos, se apossar dos espólios, e até mesmo manter superpotências afastadas.
Quando a Alemanha inventou a blitzkrieg, foi um evento marcante que alterou para sempre a forma de combater. Em vez de batalhas estáticas, entrincheiradas ou fortificadas, a blitzkrieg concentra forças num ponto determinado na linha defensiva inimiga, rompendo-a, e avançando célere por trás das linhas de defesa. Em outro ponto da linha, se faz a mesma coisa. Tem-se então duas garras de uma pinça, que ao se fecharem, podem engolfar um exército inteiro, obrigando-o a render-se. São as batalhas de cerco.
Em fins de Setembro de 1941, os alemães alcançaram os arredores de Bryansk, situada a sudoeste de Moscou. No embate, os nazistas destruíram cerca de 80% da cidade e mataram mais de 80.000 pessoas. Kalashnikov, na época com apenas 21 anos, foi ferido no ombro. Hospitalizado, sofreu muito a saber da chacina cometida pelos inimigos  contra seus camaradas. Ele ficou então obcecado em criar uma submetralhadora que poderia expulsar os alemães de sua pátria. Ainda na cama do hospital, ele rascunhou os primeiros desenhos de uma arma o mais simples possível. Saindo do hospital ele mesmo desenvolveu o protótipo de sua arma,posteriormente aprovada para fabricação em 1947.Era a  Avtomat Kalashnikova 1947.Ela combinava as melhores características de uma submetralhadora(leve e durável) e de uma metralhadora(poder de fogo).Em fins de 1949, as fábricas de armamentos já tinham produzido 80.000 AKs.
Embora a AK-47 tenha vindo tardiamente para agir na guerra mundial, os soviéticos sabiam que seu rifle de assalto poderia tornar-se a arma mais importante da era moderna, e eles se esforçaram para mantê-la oculta aos ocidentais. Os soldados soviéticos carregavam seus fuzis disfarçados em pochetes, para ocultar seu formato, e recolhiam os cartuchos usados, para evitar o conhecimento de seu calibre. Em 1956, a revolução na Hungria levou o líder soviético Nikita Krushchev a enviar o Exército Vermelho para Budapeste. O conflito requereu o primeiro uso em larga escala da AK-47, e ela fez um bom desempenho em luta urbana, quando tanques pesados ficavam presos em ruas estreitas e eram atacados com coquetéis Molotov pelos civis. Em fins dos anos 50,a União Soviética começou a usar a AK-47 para disseminar o comunismo. Nos primeiros anos da Guerra Fria, tanto Moscou como Washington tentaram conseguir favores de países neutros através de vendas e doações de armas. Comparada com os fuzis americanos M-1 e M-14, a AK-47 mostrou ser largamente superior. Sua robustez era apropriada para ambientes úmidos das selvas e sua simples estrutura permitiu fácil manutenção nas oficinas de países pobres.Finalmente a URSS distribuiu licenças gratuitas para paises "amigos", como Bulgária, China, Alemanha Oriental, Hungria, Coréia do Norte, Polônia e Iugoslávia. Enquanto isso, nos Estados Unidos, os especialistas em armamentos continuaram com a velha noção de batalha com o fuzil M-1.Este rifle teve ótimo desempenho na guerra mundial, a tal ponto que George Patton classificou-o como "o melhor implemento de batalha já produzido". Na verdade, o M-1 era pesadão, complicado, com seu pente cabendo apenas oito cartuchos, e não era uma arma automática.

VIETNAM
Só na Guerra do Vietnam os americanos se defrontaram com AK-47, e pagaram caro pela desatenção governamental em reconhecer o poder de fogo da arma russa. Um problema chave dos Estados Unidos no Vietnam envolveu o armamento básico. Apesar de sua tecnologia avançada, as Forças Armadas dos EUA não possuíam uma arma de infantaria que pudesse fazer frente a AK-47, no padrão bélico que emergia. Os confrontos muitas vezes se davam com patrulhas nas selvas, com ambos os lados lutando cara a cara, e o lado que pudesse disparar rajadas mais rápidas e consistentes levava vantagem. Só após muitos anos de discussão burocrática, os militares americanos produziram seu próprio rifle de assalto, o esbelto e sofisticado M-16.Mais de 100.000 deles foram encomendados no verão de 1966 e despachados para a zona de guerra. Já em Outubro daquele mesmo ano, relatos inesperados começaram a chegar. Os rifles estavam enguiçando em combate. Soldados ianques eram encontrados mortos, com os rifles travados, tentando consertar a pane. A moral da tropa caiu sensivelmente, ao constatarem que não podiam confiar na sua arma. Ao verificarem isto, os vietcongs tornaram-se encorajados. Ao verem o "rifle negro", como eles o chamavam, não ficavam mais amedrontados. Embora o Exército tentasse ocultar o fracasso, relatos chegaram ao Congresso por via dos pais das vítimas, assim como de soldados que se sentiam traídos. Um subcomitê parlamentar investigou o caso e ouviu relatos de soldados rotineiramente removendo AKs do inimigo abatido, e usando-as invés de seu próprio M-16. No fim, descobriu-se não haver nada de errado com o fuzil, o problema estava na munição. M-16 travava porque burocratas do Pentágono insistiram em mudar a composição do explosivo propelente: resíduos da combustão entupiam o mecanismo, após várias tiros disparados. Mas, quando o erro foi corrigido, foi tarde demais.AK-47 ficou mundialmente famosa como arma de infantaria mais avançada e confiável, aquele que podia até superar as melhores ofertas ocidentais. Era o produto low-tech comunista contra o high-tech capitalista, e a propaganda ganhou o mundo.

AFEGANISTÃO
Se a Guerra do Vietnam deu fama a AK-47, foi a invasão do Afeganistão pela URSS com o subsequente desmantelamento da União Soviética que acelerou a disseminação de AK-47, colocando esta arma nas mãos de insurgentes e terroristas, os quais consideravam agora a arma como um ícone anti-imperialista. Estrategicamente, no início a invasão do Afeganistão foi um sucesso. As baixas comunistas foram inferior a 70 soldados, a maioria relacionadas a acidentes, não a combates. Os planejadores acharam que o conflito duraria menos de 3 anos, um cronograma realista, considerando que os nativos não dispunham de armas modernas. Porém, tudo mudou quando a CIA começou a fornecer extensiva ajuda aos guerrilheiros via Paquistão, incluindo centenas de milhares de AK-47, de fabricação chinesa. A CIA preferia AK devido a seu baixo custo, confiabilidade  e farta disponibilidade.
 Apesar de desvios e corrupção, a CIA conseguiu manter os rebeldes bem abastecidos em suprimentos. Em meados dos anos 80, a guerra chegou a um impasse, já com 100.000 soldados no teatro, e o público russo descontente com um conflito impossível de ser vencido. Quando os últimos soldados soviéticos abandonaram o Afeganistão em 1989, a vasta infraestrutura de armamentos não desapareceu. Após uma década de operações, tinha se tornado uma parte entranhada na economia e na cultura do Afeganistão e países vizinhos.
ÁFRICA
Mesmo antes da retirada, a imprensa ocidental já tinha percebido o vasto arsenal de AKs na região, e o conceito de uma "cultura Kalashnikov" adentrou no léxico. No Paquistão, por exemplo, uma parte substancial da economia do país, incluindo gangs que roubavam e sequestravam, traficantes de drogas que seguiam rotas estabelecidas, e pequenos armeiros que compravam, consertavam  e revendiam, ou até fabricavam sua próprias versões, dependiam da sempre presente AK.A expansão aumentou com o colapso da União Soviética, e as repúblicas, que antes faziam parte do bloco, começaram a leiloar seus arsenais.AK-47 começou a ser vendida a preço de banana, invadindo agora a África. Libéria, Ruanda, Serra Leoa, Somália, onde quer que houvesse um conflito tribal, AK prolongou lutas que, provavelmente não teriam durado tanto sem ela. A arma tornou-se parte do cotidiano de africanos, a ponto ser chamada um cartão de crédito: "Não saia de casa sem ela".

AMÉRICA LATINA
Na América latina,AKs acabaram nas mãos dos cartéis de drogas e rebeldes guerrilheiros.Assim como a CIA despachou armas para o Afeganistão, ela fez o mesmo na Nicarágua, abastecendo os contras, que combatiam os sandinistas marxistas.AKs provocaram guerras civis em El Salvador assim como a violência das FARC na Colômbia.Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez recentemente anunciou a compra de 100.000 AKs dos arsenais russos.Ele também informou planos para fabricar a arma em seu país.
AL-QAEDA
Antes da invasão soviética, o Afeganistão era considerado um país muçulmano moderado, porém a guerra fortaleceu um ramo radical islâmico, alimentado pelas armas da guerra e pela economia devastada. Nas regiões montanhosas próximas à fronteira com o Paquistão, o milionário saudita Osama bin Laden deflagrou uma jihad, primeiro contra os russos, depois contra os americanos.
Já no Iraque, apesar de que o arsenal das grandes armas de Saddam Hussein terem sido destruidas: tanques e mísseis, sete a oito milhões de armas portáteis foram saqueadas, alimentando a insurgência subsequente.
CONCLUSÃO
Já com 85 anos, doente e quase surdo, Kalashnikov frequentemente se apavora com sua criação. "Eu gostaria de ter inventado um aparador de grama", afirmou ele ao The Guardian, em 2002.Em 2004, a revista Playboy considerou-a um dos "50 Produtos Que Mudaram o Mundo", além do desktop Macintosh da Apple, da pílula anticoncepcional e do Sony Betamax.
Mesmo assim, o inventor russo não recebe royalties por seu trabalho, e considera outros como culpados pela mortandade, dizendo: "Eu inventei uma arma para defender a pátria, não me arrependo ou me responsabilizo se outros fizeram mal uso dela"

larry@kahaner.com


Larry Kahaner é o autor do livro "AK-47: The Weapon That Changed the Face of War"