segunda-feira, 30 de maio de 2016

HISTÓRIA DE FAMÍLIA

HISTÓRIA DA FAMILIA MEIRA LINS.

POR JOSÉ OTÁVIO MEIRA LINS.

OBS: SALVAMOS DO FACEBOOK APENAS OS CAPÍTULOS A SEGUIR (ALUIZIO GOMES)

5º Capítulo
ACHEI QUE TE AMAVA

Isso é um problema de família. E dos dois lados. O avô por parte de mamãe tinha um listão de setenta e duas namoradas. Papai, com cinco anos, já tinha se apaixonado perdidamente pela professora de piano; passou uma semana sem comer quando cancelaram as aulas. Comigo não podia ser diferente, foram muitas paixões. Não confundam com amor ou safadeza, isso é outra coisa. Falo daquelas paixonites platônicas, anônimas, que se apoderam de sua cabeça – pensa, pensa, pensa... Paixão é coisa que perturba o juízo e não passa nem perto do coração. Começou aos quatro anos, com a professorinha do jardim.
Na época era jardim mesmo, pois a aula era embaixo de um caramanchão florido na casa da bela. A vizinha paulistinha vinda do interior, puxando pelos erres, era um misto de Dóris Day em “A espiã das calcinhas de renda” com figuras românticas de algumas porcarias que li em M.Delly – avisei que não tive filtro na leitura. A filhota do meio de um amigo de papai, com quem fizemos uma viagem de Kombi para o Rio – linda, linda, linda... Uma alemãzinha que foi jogada lá em casa enquanto os pais passavam uma temporada na Alemanha – branquinha, lourinha, com uma butuca de olhos azuis. Passei da infância e, mesmo assim, ainda continuei com as paixonites agudas. A bela do muro – passava a tarde em cima do muro em frente ao prédio onde morava, uma decepção quando finalmente me aproximei, pois só comia batata frita e execrava qualquer outra variação gastronômica, o que era um sacrilégio para quem vem de uma família em que a comida é cláusula pétrea da boa vida. A outra, que fingia ser ela e me deixava louco, ligava para mim assim que passava em frente ao prédio da bela; quando descobri, tive a maior oscilação na autoestima que um cara pode ter.
A priminha que correspondia, mas que a norma de família – primo não namora com prima –afastou. Uma irmã mais velha de uma tia torta, belíssima, mas muito barro pro meu caminhãozinho. Muito barro mesmo, pois hoje pesa quase uma tonelada, de gorda que é. As gêmeas cariocas que todo ano passavam o Carnaval na cidade, mas que só tinham olhos para dois marmanjos com quem se casaram e se deram mal. A coleguinha de faculdade que, na casa de campo – de medo – exigia dormir no meu quarto, cuja barra não enfrentei, pois, por trás do rosto angelical, existia uma fera que eu não sabia se podia controlar,sem falar nos peitões que não faziam meu gosto na época. A paulista quatrocentona que só pensava em arrumar um descendente de bandeirantes e execrava qualquer outra descendência, mesmo que estivesse no solo pátrio desde mil quinhentos e trinta e dois. A coroa goiana, mulherona, que dava, dava e dava corda, mas não ia além disso, pois era casada com um cara pra lá de brabo. Precisou passar muitos anos e a viuvez para que... aí já não foi paixão, foi safadeza mesmo.
 Não consegui bater vovô no ranking das namoradas, foram apenas quarenta e três, olha que comecei tarde. A primeira pegada de mão aos dezesseis. Dois namoros sérios, um deles com alguns jogos de guerra, pois, na época, não se podia fazer muita coisa. Avançou, casou. Com a instituição da vela, a irmãzinha, que tava o tempo todo colada no casal... era quase impossível até passar por perto dos peitinhos, maior sonho de consumo da época. Com essa convivência toda, não foi nem uma, nem duas vezes, que me apaixonei por uma linda irmã-vela. Confesso que tive algumas – muito poucas – chances de penetrar o flanco inimigo, a galega sem os dedos dos pés foi uma delas, mas o medo de acertar o pito da menina e ter que casar fazia qualquer um não passar das coxinhas das garotas. Pra quem ficou curioso com a lourinha sem dedinhos, a história é a seguinte: ela era linda, ela era inteligente, ela tinha um corpão, no teste de praia era nota dez; o negócio é que, quando se chegava perto e se olhava bem direitinho, faltavam os dedos do pé. As riquinhas, de boa família, pareciam já ter nascido comprometidas; namoravam apenas com as parelhas dos riquinhos de boa família. Outra baboseira era se apaixonar pelas mais velhas. Pura roubada, pois elas pareciam que nem te enxergavam. Nesse caso, foram muitas: a riquinha que de tão bonita levou um pretendente ao suicídio; a húngara de olhos verdes; a modernosa que já fazia de tudo. Paixão, paixão, sempre achava que amava. Passou a juventude, tudo na mesma. Entrei na fase adulta, tudo na mesma. Já casado, tudo na mesma. Foi um carma que sempre me acompanhou – se apaixonar.

7º Capítulo
MODISTA
Pai rico, filho nobre e neto pobre. Esse era um dos ditados mais usados por vovó. Não era o seu predileto, muito pelo contrário, mas o mais repetido. Foi na pele que ela sentiu o dito popular. Vovô era filho do maior exportador de açúcar do país. Ele e os irmãos tiveram o azar de perder a mãe bem cedo.
O pai, que entendia tudo de exportação de commodities, e nada de educação, teve a imbecil-ideia-genial-comercial de separar os filhos, alguns ainda usando fraldas, e mandá-los para as melhores escolas em cada um dos países com o qual negociava o danado do ouro branco. Vovô – para sorte ou azar – caiu na terra da rainha.
No Eaton College, convivendo com a fina flor da Bretanha, só podia ter aprendido mesmo duas opções de vida, caçar, ler, caçar, tomar champanhe, caçar, cavalo puro-sangue inglês de corrida, caçar, atravessar o Canal da Mancha para Paris, caçar e comer bem, que ninguém é de ferro. Na volta da turma, só podia dar a merda que deu. Em um ano de administração, detonaram uma cacetada tão grande de contos de réis que o velho tomou de volta o rumo dos negócios, e aí ficou até morrer. Vovô passou assim a fazer o que mais sabia: caçar, com suas espingardas feitas sob medida no armeiro londrino, comer, ler em inglês, que era sua língua-mãe, fazer neném em vovó. Depois que o bisavô milionário morreu, foram mais de vinte anos vivendo nababescamente com o que tinha ficado de herança; olha que eram dezesseis filhos e um monte de agregados. Meu avô comeu ruas e ruas de casas, passou nos cobres engenhos e mais engenhos de açúcar.
 O conceito era fazer o que o dinheiro desse. Prova disso é que nunca colocou mais que alguns réis de gasolina no carro, chegou o dia em que o Buikão de rodas de madeira ficou na garagem de casa, nunca mais andou, porque a verba destinada não comprava nem um litro de combustível. Ele, o nobre; papai, o mais velho dos dezesseis, o pobre. Nos dezessete anos de papai, a grana havia acabado. Vovó, que era superprendada, virou modista. Passou a costurar para a turma da sociedade. Quando o dinheiro sai pela janela, o desamor entra pela porta. Vovó e vovô nunca mais se bicaram. Meu velho teve que ir à luta. De porteiro a empresário, foram mais de vinte anos. Nunca deixando para trás os irmãos. Foram anos roendo osso. Vovó chorava toda vez que, na mesa, um dos meus tios dizia: acabei ou acabou-se. Papai passou toda a vida comendo asa de galinha e o sobre. Mesmo podendo, nunca mais se habituou a uma sobre coxa ou a uma titela. Mamãe, que tinha casado e ido morar na mesma casa, criou parte da meninada. Não tinha comida que desse. Várias vezes, quando as coisas melhoravam, se saciava os esfomeadinhos com vinte quilos de batata frita, feitas em caldeirões no fogão externo, a lenha. A solução foi passar a criar porco, galinha e peru.
O perigo era uma vizinha de mão-leve. Os bichos só pararam de sumir quando vovó, após uma contagem conjunta-criteriosa, contratou-a para tomar conta do rebanho. A família sempre teve fixação por peru. Era a única ave que aguentava o tranco da fome da meninada e de vovô. Começaram abrindo uma pequena oficina no oitão da casa. Todos trabalhavam. O negócio foi crescendo. As estradas ruins quebravam muitas molas, abriram uma fábrica. Compraram uma frota inteira de caminhões, surgiu a transportadora. Daí para se conseguir revendas autorizadas, fazendas de gado, siderúrgica de ferro gusa, hotéis não foi um pulo, não, foram mesmo muitos anos de pedreira. O velho se recuperou de tudo, só não recuperou o gosto de gastar dinheiro. Tinha uma verdadeira obsessão por segurança. Achava que o dinheiro era pra se guardar. Via assombração em tudo. Não abria mão de fazer o imposto de renda de toda a família, o que transformava essa época num imenso terror familiar. Um dos poucos luxos que se dava era, de vez em quando, fazer uma comprinha por reembolso postal. Em computador nunca tocou, mas foi um dos primeiros empresários a colocar um nas empresas.

8º Capítulo
FRITADA E PASTELÃO
Essa minha família acha que a tal da comida é milagrosa, a começar pela lenda de que meu bisavô foi salvo da gripe espanhola por um dos tradicionais e pesadíssimos pratos típicos da família. O cara tava ferrado, de cama, suando mais que bode embarcado, sentiu o cheiro da mão de vaca feita pela preta velha na cozinha, colocou o robe de chambre, desceu a escadaria, comeu dois pratões da famigerada com pirão, teve uma suadeira dos diabos, subiu as escadas, tomou banho, colocou o fraque com colete, pegou o carro de aluguel, foi para os seus armazéns no cais do porto. Mandou a espanhola para além-mar, pra não dizer coisa feia. Temos uma puta fixação em comida. Isso ocorre há mais de quatro gerações. A maior parte da família já nasce cozinhando, seja homem, seja mulher. Dessa obsessão não escapa ninguém. Em época de fartura, em época de penúria, a comida é ponto central na cabeça da parentada. O interessante é que não tem gordo na família. O que os caras querem mesmo é se deliciar. O que importa é a qualidade, não quantidade.
Mesmo na pior das situações, a turma nunca deixou de falar do tal do arenque, do hadoque, do caviar, do salmão defumado, mesmo que fosse só pra ficar com água na boca. Sem falar que se usa comida até pra gozar os outros. A fritada de miolos de boi de vovó foi muitas vezes servida sem se dizer à vítima do que se tratava. De tão gostosa, quem não sabia o que era, enfiava o pé na jaca. Tinha gente que, depois de se refestelar, quando ficava sabendo o que tinha comido, corria sem a menor discrição para o banheiro e enfiava o dedão na goela. Toda história gira sempre em torno da comida: o amigo caçador que meu avô considerava já morto, sumido há mais de quinze anos, que ressuscitou batendo no portão exatamente no dia de uma panelada de mão de vaca, sua comida predileta. Cada um tinha, para os que já morreram, ou têm, para os que estão vivos e bulindo, um prato de sabor imbatível inesquecível. As tias: bolo de limão, bolo de banana, bolo de rolo, bolo de laranja, frango de forno, cozido, cassoulet, as inesquecíveis panquecas etc. As avós: feijão-mulatinho feito no caldeirão de barro no fogo de carvão, sopa de feijão, sopa de milho, peruada etc. Mamãe: sarapatel, vatapá, pirão de nenê, coq au vin, bacalhau de coco etc. Papai: o bouillabaisse, o hadoque pochê, peixada com peixe fresco bulindo, caviar com ovos cozidos, cebolas bem picadinhos, alcaparras etc.
Meu DNA não podia falhar. Com dez anos, pedi a minha avó que fizesse as famosas tapiocas de manteiga até eu pedir, por favor, pra parar. Aos onze, já sabia o dia do kassler com chucrute na casa da tia casada com o suíço. Nunca sem avisar da ida com antecedência, pois lá a ração era na conta certa, não comunicou que ia, ficava sem comer. Na casa da tia das panquecas, quando eu aparecia de surpresa, ouvia sempre o código FC. Descobri muito tempo depois que o “Família Contenha-se” era dirigido à voracidade dos sete filhos na mesa e uma consideração à visita. Tinha gente que até escondia comida: ganhava um prêmio quem descobrisse onde vovô escondia o presunto cru, as misteriosas latas de arenque e os potes de caviar de papai, que só apareciam na hora da mesa, os chocolates suíços do tio suíço, que duravam todo tempo entre uma viagem e outra para a Suíça. Quem é louco por comida passa também por poucas e boas. Uma vez, no interior, tive que comer um tatu que seria maravilhoso se a cozinheira não o tivesse servido com as próprias mãos, com o esmalte das unhas descascado. Ou o tal de picoroco no Chile, que mais parecia um caramujo apodrecido. Ouriço?, estou fora; rabo de tanajura?, também. Buchada de bode, tem que dizer que não gosta; depois, sentir o cheiro e aí aceitar, se não cheirar à merda de bode. Cozinho quase tudo e com facilidade. Ficou com água na boca? Gosta de cozinhar? No final dou umas receitinhas de família para você arriscar.


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